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Desterritorializações: o Teatro Futuros recebe "Entre Caminhos"

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 01/10/2023 às 10:30:39

Os corpos que ocupam o palco do Teatro Futuros compõem trajetos lineares bastante claros para o espectador. Vão e vêm, passam das retas às curvas e, então, a itinerários espiralados. Estabelecem, portanto, territórios. O termo “território” não está sendo considerado apenas como pedaço de terra a ser explorado, ou como representação de um grupo cultural, mas, sobretudo, como pensa Milton Santos, numa perspectiva relacional, na qual as dimensões individual e histórica entram em conflito e negociação. Isso é verificado na performance, inicialmente, quando um bailarino escapa rapidamente da singularidade de seu caminho, para se adaptar ao caminho do colega de cena. Rigidez e fluidez, território e rede.


Caminhos “menores”

Um dos usos que Gilles Deleuze faz do termo “desterritorialização” se encontra no âmbito de minorias sociais, impedidas de se expressarem dentro de um território. Criam-se, aí, literaturas “menores”, quer dizer, línguas de um grupo que não detém o poder, dentro do território hegemônico da língua oficial. Aqui, em "Entre Caminhos", é perceptível que os trajetos experimentados em cena são menos as grandes avenidas com nomes de políticos famosos e mais as ruelas sem placas oficiais, nas quais alguns códigos “menores” são compartilhados.

Para Deleuze, as literaturas “menores” são desterritorializadas, políticas e coletivas. Os caminhos “menores” (ruelas, periferias, rituais dionisíacos) que emergem em "Entre Caminhos", nos conduzem a pensar nas nossas práticas socioculturais no Rio de Janeiro de 2023. A proposta de encenação de Daphne Madeira parece operar transformações na lógica empresarial que vem contagiando e contaminando a arte e a educação no mundo atual. Os caminhos “menores” colocados sob o foco chamam atenção para nossos artistas como uma “maioria minorizada”.


Diferenças e repetições

A ideia de território aparece para o espectador desde o princípio porque o chão do palco começa em evidência. O acontecimento cênico inicia com corpos vindos da penumbra que se deslocam suavemente, quase flutuando. O pé detém a grande atenção. Pelos pés, eles vão traçando linhas no chão do palco e, gradativamente, a luz vai ganhando intensidade e os instrumentos vão instaurando um espaço sonoro mais iluminado. Os artistas em cena olham os próprios pés, enquanto começam a desconstruir danças contemporâneas, como o vogue e o funk. Se, por um lado, aparece o duck walk, da cultura ballrooom, por outro, o pé se apoia sobre o metatarso e pivoteia, como que desmembrando o passinho do funk.

Aos pés são justapostos o verbo e a voz: Luana Bezerra, na esquerda baixa, colada aos músicos, nos fala sobre andar para traz, refazendo a trajetória de sua ancestralidade. Os corpos de Tago Oli e Salasar Junior “rebobinam” seus trajetos no palco, indo e voltando e criando uma repetição sempre nova. A repetição nunca do mesmo, mas da diferença. Refazer o caminho não leva à mesma experiência, não mantém o estado das coisas, mas estabelece um contato entre ritmo e tempo que revela um espectro de temporalidades e espacialidades concomitantes. A ancestralidade está constantemente sendo reafirmada, porém transformada na mesma medida.

Esse território de jogo entre formas se estende para a iluminação, que ora é aberta e toma homogeneamente o espaço, ora usa focos e gobos para recortar e manchar os corpos no espaço. Quando o espectador se acostuma com as dissonâncias entre os três corpos dançantes, a direção constrói um momento de grande consonância entre gesto corporal e musical. Vejamos.

Primeiro, os pés que batem no chão, se harmonizam com as batidas de Elias Rosa no cajon e os golpes de arco de Fernando Alves Pinto contra o serrote. Em seguida, as notas tortuosas do serrote e o som ressoante e etéreo do hang drum, conduzem (ou são conduzidos) o movimento ondulante das colunas dos bailarinos. A harmonia entre os elementos é coroada por um foco central no palco e a estrutura triangular entre os corpos, que dá ao espectador uma impressão de equilíbrio.

Zé Celso, fogo, vazio, silêncio

Uma apoteose final entoa as palavras “Meu cavalo tá pesado, meu cavalo quer voar, atuar, atuar, atuar pra poder voar”, remetendo imediatamente ao fogo no qual Zé Celso acaba de desaparecer. Fogo dionisíaco. Trata-se do auge da doação física dos artistas em cena. Estar em cena traz sempre algo de sacrificial, portanto de oferenda, portanto de perda. Evidentemente, uma perda para ganhar de volta, uma renovação. Em diálogo com essa dimensão da perda, o que segue esse grande momento de fogo é o vazio e o silêncio. Os corpos se encontram num espaço cênico sem elementos, com pouca iluminação e nenhuma música vindo dos instrumentos, ou das caixas de som. Apenas corpos em seus resíduos de energia tendo que lidar com o vazio e o silêncio.

Na verdade, seria possível, e talvez preferível, que essa tensão (construída entre o silêncio-vazio e os corpos preenchidos de toda sua potencialidade de movimento) fosse expandida, quer dizer, que o silêncio se prolongasse um pouco para além dos segundos em que isso acontece em cena. É preciso que o espectador se veja, também, tendo que lidar com essa falta de preenchimento mais evidente. Estar diante do palco vazio, numa penumbra, com os instrumentos calados, depois de tanta música e dança. Sustentar esse potencial energético e sair da sala de espetáculo pronto para refazer seu caminho de casa.

"Entre Caminhos" merece uma longa trajetória para experimentar muitas outras configurações espaciais. A última imagem, qual seja, o corte de blackout antes do fim da corrida dos três bailarinos requer experimentações tanto em palcos curtos, como esse do Futuros, quanto em grandes vãos de salas maiores. Variações contínuas dos caminhos cênicos, que nos tornam estrangeiros em nosso próprio território, nos dão coroas no meio das ruelas mais simples, como as grandes coroas feitas com as mãos de Tago e Salasar em dado momento do espetáculo.

Ficha Técnica

Concepção e Direção : Daphne Madeira

Direção Musical: Fernando Alves Pinto

Performers criadores:

Luana Bezerra

Salasar Júnior

Tago Oli

Composição musical :

Elias Rosa e Fernando Alves Pinto.

Iluminação: Fernanda Mantovani

Figurino: Josef Chasilew

Costura: Lucilene de Souza

Produção Geral : MdeM Produções

Assistente de produção: Débora Paganni

Teatro Futuros: Rua Dois de Dezembro, 63


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